“Nem parece autista”: o peso invisível

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Imagem: Divulgação/Gov.com

No Abril Azul, histórias de vida de profissionais da Ebserh mostram os desafios e o poder do acolhimento

Ebserh/Comunicação Social –

 “Todo mundo virou autista só para conseguir sentar no ônibus.” A frase, carregada de descrença, é uma das muitas que Lais Ramos já ouviu. Autista e residente de Enfermagem no Hospital Universitário Gaffrée e Guinle (HUGG), vinculado à Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (Ebserh), ela fala sobre o peso do preconceito e da invisibilidade. “As pessoas acham que é frescura, que é só uma desculpa. Mas ninguém imagina como é estar ali, naquele ambiente cheio de cheiros, barulhos, toques”, relata.

O diagnóstico chegou na adolescência, após uma trajetória de crises e desconexões.

“Quando descobri, parece que virou uma chavinha tão incrível. Tudo começou a fazer sentido”, conta. Lais lembra que os sinais já estavam presentes desde a infância, mas passaram despercebidos — como ainda ocorre com muitas meninas, que tendem a mascarar os sintomas. Mais do que um nome, o diagnóstico trouxe alívio e orientação. E abriu caminho para que ela encontrasse, na residência multiprofissional, profissionais dispostos a escutar. “Não existe uma receita pronta, mas encontrei equipes humanizadas, que realmente tentam entender como me ajudar”.

O autismo que não se vê

Para Aline Zottos, mãe do Eduardo e chefe da Unidade de Gestão de Graduação, Ensino Técnico e Extensão do Hospital Universitário Maria Aparecida Pedrossian (Humap-UFMS/Ebserh), o processo até o diagnóstico do filho foi longo e solitário. Como o menino mantinha contato visual, era carinhoso e tinha fala dentro do esperado, os sinais foram minimizados. “Diziam que era coisa da minha cabeça. Só depois de meses, e com muita insistência, consegui uma consulta com neurologista particular. Aos quatro anos, veio o laudo”.

O impacto foi imediato. “Mesmo tendo consciência, quando você vê o laudo na sua frente, tudo muda.” Eduardo iniciou um tratamento intenso: terapia ABA cinco vezes por semana, além de sessões com fonoaudióloga, terapeuta ocupacional, psicopedagoga e psicóloga. “É uma rotina exaustiva, mas é isso que permite os avanços”.

Hoje, aos oito anos, ele já faz amigos e brinca com os colegas. “Isso é uma felicidade imensa. Teve um tempo em que achei que isso nunca aconteceria.” Aline destaca que, mesmo com os avanços na compreensão sobre o transtorno, muitos mitos persistem.

“As pessoas ainda acham que todo autista é isolado, gênio ou não interage. Mas não existe um perfil pronto”. O que mais a fere são os comentários que romantizam o espectro. “Dizem: ‘nossa, ele nem parece autista, é tão tranquilo’. Mas só a gente sabe o quanto custa esse ‘tranquilo’.”.

Diagnóstico precoce e os desafios do sistema

A neuropediatra Fernanda Dubourg, do Hospital Universitário Professor Edgard Santos (Hupes-UFBA/Ebserh), soma à experiência médica a vivência pessoal como mãe de uma adolescente no espectro. Sua filha iniciou terapia antes dos dois anos, graças ao reconhecimento precoce dos sinais de atraso no neurodesenvolvimento. Ela acredita que isso contribuiu para a redução do nível de suporte ao longo dos anos. No entanto, ainda que hoje esteja no nível 1, é necessário manter o acompanhamento com equipe multidisciplinar especializada e apoio pedagógico, devido ao TEA e comorbidades como TDAH e discalculia.

A médica observa com preocupação o aumento nos diagnósticos de TEA, sem que haja ampliação proporcional de profissionais capacitados. Segundo estimativas do Centro de Controle e Prevenções de Doenças (CDC-EUA), uma em cada 36 crianças nos Estados Unidos é identificada com o transtorno aos oito anos. Alguns estudos, segundo Fernanda, apontam que parte desse crescimento se deve à ampliação dos critérios diagnósticos, à maior conscientização de pais e profissionais, e a fatores ambientais e comportamentais.

No entanto, ela chama atenção para um fenômeno paralelo: o risco de diagnósticos equivocados, especialmente onde faltam centros e especialistas em TEA. Como o diagnóstico é clínico, é essencial que os profissionais estejam capacitados para diferenciar o autismo de outras condições, sobretudo na rede pública de saúde.

“Queixas como hiperatividade, irritabilidade ou atraso na fala podem ter origens diversas. A interpretação incorreta desses sinais pode levar a um diagnóstico inadequado”, alerta.

Fernanda reconhece que o Brasil avançou com políticas públicas para pessoas com TEA, tendo incluído o tratamento do autismo nos Centros Especializados em Reabilitação (CER), mas pondera que a abordagem deve ir além do conceito de “reabilitação”. Para ela, é preciso pensar em centros voltados ao neurodesenvolvimento, capazes de tratar transtornos frequentemente comórbidos, respeitar a neurodiversidade e valorizar a plasticidade cerebral nos primeiros anos de vida.

“Entre 0 e 6 anos de idade, as crianças se desenvolvem em cinco áreas principais: habilidades motoras grossas, habilidades motoras finas, linguagem, percepção-cognição e socialização. Quanto mais precoce o diagnóstico e tratamento do TEA, maiores as chances para o resultado ideal”.

Superações silenciosas e acolhimento possível

Apesar dos obstáculos, histórias como a de Lais mostram que é possível construir caminhos de autonomia e pertencimento. A chegada à residência, por meio do Enare, realizado pela Ebserh, foi difícil. “Sempre tive que me esforçar mais que os outros. Não entender certas coisas e não ser entendida impactou muito.” Hoje, ela ainda enfrenta dificuldades com ambientes barulhentos e excesso de estímulos, mas encontrou apoio em equipes que prezam pela escuta. “Minha coordenação de enfermagem é incrível. Me sinto acolhida, compreendida. Isso muda tudo”.

Aline, por sua vez, transformou a dor em ação. Estuda o espectro, compartilha conhecimento e acredita que combater a desinformação é uma forma de proteger outras famílias: “Hoje, meu maior objetivo é orientar. Para que outras pessoas não passem o que eu passei”.

Já Fernanda, mesmo diante de algumas limitações, segue promovendo formação e atualização sobre o tema. No Hupes, o ambulatório de Neurodesenvolvimento realiza de 80 a 100 atendimentos mensais, com foco no diagnóstico e acompanhamento de crianças com transtornos do neurodesenvolvimento. O espaço também serve como campo de formação para estudantes de Medicina e residentes.

“Com a estrutura que temos, buscamos oferecer o melhor cuidado possível, baseado nas evidências mais atuais”.

Durante o Abril Azul, Fernanda e a coordenadora do serviço de Neuropediatria da UFBA reforçarão a importância da conscientização. A iniciativa é essencial para o aprendizado coletivo: acolhimento e diagnóstico precoce são indispensáveis para a melhoria da saúde e a inclusão social.

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