Produtivismo e disparidades de gênero e raça nas Ciências da Informação

0
4

Além do prêmio Nobel, o mais famoso, existe uma vasta quantidade de prêmios destinados a cientistas que se destacam. Essas premiações estão entre as recompensas acadêmicas que visam retribuir os pesquisadores por seu trabalho e sua dedicação ao desenvolvimento da ciência. Não é novidade, contudo, que as premiações por vezes são alvo de críticas, e a falta de diversidade é uma delas. Se pensarmos no Nobel, há uma tímida presença de mulheres (das 947 pessoas que receberam o prêmio, 58 são mulheres) e uma ausência de negros entre os premiados, o que demonstra um gravíssimo problema de diversidade nas vitrines da ciência.

Fora o ímpeto pelo desenvolvimento científico no meio acadêmico, essas recompensas atribuem reconhecimento ao pesquisador e são idealmente concedidas pelos pares. Entende-se por sistema de recompensas um conjunto de processos e ações concretas de avaliação do desempenho dos cientistas, que deve recompensar aqueles que se ajustam às normas da instituição.

O sociólogo Robert Merton elenca que as recompensas acadêmicas podem ser premiações, citações, eleição para sociedades científicas honoríficas, medalhas e prêmios de vários tipos, nome em cátedras de instituições de ensino e pesquisa. Ainda, a mais difundida e completa forma de reconhecimento acadêmico é ter o próprio trabalho usado e explicitamente reconhecido por seus pares.

O sistema de recompensa na ciência possibilita que o pesquisador se destaque no campo científico. Tal sistema recebe, contudo, forte influência do produtivismo, conceito que surgiu nos Estados Unidos na década de 1950, a partir da conhecida expressão “publicar ou perecer” (publish or perish). A crítica ao produtivismo se dá em função de o sistema de avaliação atual atribuir maior valor à quantidade de publicações que à qualidade, fazendo com que o pesquisador se submeta a cumprir metas de produção com a finalidade de progredir na carreira acadêmica, conseguir financiamento para futuras pesquisas, manter suas bolsas, alimentar o currículo ou para obter maior visibilidade no meio acadêmico.

Levando isso em conta e contextualizando com as desigualdades econômica, racial e de gênero encontradas no Brasil, como os pesquisadores se percebem em relação à logica produtivista e à busca pelo reconhecimento? Pensando nisso, encaminhou-se um formulário com questões abertas e fechadas a todos os pesquisadores da Ciência da Informação no Brasil, incluindo mestrandos, doutorandos e docentes dos programas de pós-graduação. Retornaram 93 respostas. Os resultados apontam a predominância de pessoas brancas no âmbito da pós-graduação em Ciência da Informação (58%), e, em relação ao gênero, as mulheres configuram maioria (71%).

Quando perguntados sobre como, em sua percepção, a lógica produtivista na ciência se articula ao sistema de recompensa na ciência, a maior parte dos pesquisadores respondeu que acredita na existência de uma relação direta entre produzir e ser recompensado.

A expressão que melhor representa essas ocorrências é a seguinte: “A lógica produtivista na ciência e a recompensa acadêmica sustentam o formato atual que mantém uma elite de cientistas, ou seja, quanto mais citações e mais publicações, maior será o reconhecimento. E as pessoas que mais publicam e consequentemente são mais citadas são, também, as que possuem maior ‘patrocínio’ ou têm condições financeiras”.

Ademais, alguns cientistas percebem que a lógica produtivista, ainda que possa recompensar os pesquisadores de alguma forma, possui impactos negativos na saúde física e mental. Fatores como pressão, sobrecarga, neurose para produzir, estresse, necessidade de trabalhar incansavelmente em níveis sobre-humanos e baixa valorização do profissional/estudante fazem parte das respostas desse grupo de pesquisadores.

A partir de uma estrutura de avaliação pautada na quantidade de produção dos pesquisadores, autoras como Bayer, Astin e Elena Orozco afirmam que pesquisadoras do sexo feminino teriam desvantagem nesse sistema, uma vez que às mulheres são atribuídos diversos papéis e tarefas que não são designadas aos homens, muitas delas advindas da estrutura machista da nossa sociedade. Indo ao encontro dessa ideia, 51% dos pesquisadores respondentes percebe que existe disparidade em relação a homens e mulheres por conta do acúmulo de funções e da maternidade. A seguir está elencada a resposta que melhor representa essa ideia: “Ainda há desigualdade entre as tarefas domésticas e o cuidado com a prole entre famílias com gêneros distintos, e, em geral, essa disparidade faz com que mulheres tenham uma carga maior de trabalho (interno e externo ao lar). Como ser produtivo academicamente de modo igual se nossas atividades são maiores?”.

A respeito dos fatores que intervêm na produção científica e se referem a gênero e raça, os pesquisadores percebem que maternidade, dupla jornada, preconceito racial, preconceito de gênero, racismo estrutural e questões socioeconômicas se constituem os principais intervenientes. Para além disso, a palavra “preconceito” aparece em muitas das respostas, de modo que representa o fato de que mulheres negras enfrentam os maiores desafios atrelados aos preconceitos de gênero e racial, atuando simultaneamente na manutenção das disparidades no meio acadêmico.

Com isso, concluímos que o atual sistema de avaliação na ciência privilegia determinado grupo de cientistas que domina o campo científico e dita as regras do meio acadêmico, preservando certas tradições na ciência. Por isso, é urgente pensar a respeito de mudanças que permitam modificar esse cenário e romper com a perpetuação de um modus operandi que perpassa gerações de cientistas.

(*) Letícia Pereira de Souza é bacharel em Biblioteconomia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Artigo anteriorUma questão canina
Próximo artigoPRF apreende 1,5 tonelada de maconha em Ponta Porã (MS)

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui