Relatório publicado pela ONG Oxfam revela que 82% da riqueza mundial gerada em 2017 ficou nas mãos da parcela 1% mais rica do planeta

Caso você seja uma das 2.043 pessoas com renda superior a US$1 bilhão, há muitos motivos para comemorar: entre março de 2016 e março de 2017, o planeta presenciou o surgimento de um novo bilionário a cada dois dias. Também não há nada para reclamar em relação ao Brasil: durante o período, 12 felizardos se juntaram à lista de pessoas mais ricas do país— apesar de ter enfrentado uma das piores crises econômicas de nossa história, temos 43 bilionários com patrimônio de quase US$ 549 bilhões.
Agora, se você faz parte daquela parcela da população que precisa sambar para deixar os pagamentos dos boletos em dias, as notícias não são animadoras: em 2017, 82% de toda a riqueza gerada no planeta ficou em posse da parcela 1% mais rica. Enquanto isso, 3,6 bilhões de pessoas que fazem parte da população global mais pobre ficaram sem nada. Sabe aquela história de que é preciso esperar o bolo crescer para então dividi-lo a mais pessoas? Pois ele já está quase queimando e a maioria do planeta sequer sentiu seu sabor: 42 pessoas detêm a mesma riqueza que os 3,6 bilhões mais pobres, de acordo com dados do banco Credit Suisse.
Publicado nesta segunda-feira (22 de janeiro), o relatório “Recompensam o Trabalho, Não A Riqueza”, produzido pela ONG Oxfam, coincide com a semana de início do Fórum Econômico Mundial, em que as elites econômicas se reúnem na cidade suíça de Davos para discutir as principais questões econômicas e sociais do planeta. “Não há problema nenhum com pessoas ganhando dinheiro e aumentando seu patrimônio. O problema é quando há um contraste em que uma enorme parte da população está perdendo”, afirma à GALILEU Rafael Georges, coordenador de campanhas da Oxfam Brasil.
Formada por 20 organizações que atuam em mais de 90 países, a Oxfam publicou em setembro de 2017 um relatório sobre as desigualdades econômicas no Brasil. De acordo com o estudo, quem recebe um salário mínimo — o equivalente a R$ 937 — precisaria trabalhar durante quatros anos de maneira ininterrupta para ganhar o equivalente ao rendimento mensal de um membro da parcela 1% mais rica do país.
“Sem a redução da desigualdade, acreditar que é possível construir um país melhor é o mesmo que acreditar no Papai Noel”, afirmou Oded Grajew, presidente do Conselho Deliberativo da Oxfam Brasil, durante o evento de lançamento do estudo.
No caso brasileiro, o agravamento das iniquidades é ainda mais evidente: a lenta recuperação econômica propagandeada pelo governo federal ainda é benéfica apenas aos mais ricos. Um levantamento da Tendência Consultoria realizado em setembro de 2017 revelou que as pessoas com renda superior a R$ 17.286 tiveram um crescimento de rendimento de 10,3% em relação ao mesmo período em 2016. Os mais pobres, por sua vez, tiveram uma perda de renda de 3,15%.
Trabalho que não enriquece
“Ah, mas se não existissem bilionários, não teríamos empregadores e viveríamos uma situação pior do que a atual.” Um dos argumentos recorrentes para relativizar pesquisas como a realizada pela Oxfam poderia fazer até algum sentido se não fosse desmentido pelos dados: aproximadamente um terço das fortunas bilionários é atribuída a heranças — nos próximos anos, as 500 pessoas mais ricas do mundo deixarão US$ 2,1 trilhões em legado familiar. A meritocracia explica?
Mais expressivo do que esse número, no entanto, é o aumento da renda proveniente do capital financeiro e não atrelado à “produção real” de riquezas. Em outras palavras, um trabalhador do Sudeste Asiático que confecciona roupas para marcas de fast fashion ganha um salário diário de US$ 4 por uma jornada de trabalho de 14 horas. Enquanto isso, acionistas da Zara veem engordar seus rendimentos sem ao menos saber o endereço de uma das fábricas de roupas — o espanhol Amancio Ortega, dono da rede varejista, tem uma fortuna estimada de US$ 76,2 bilhões.
“As empresas que operam com capital aberto tentam maximizar retorno para seus acionistas sobre a cadeia de trabalho. Os trabalhadores no mundo estão vivendo um cenário de precarização”, afirma Rafael Georges, da Oxfam. O cenário de degradação dos postos de trabalho não é uma particularidade apenas nos países subdesenvolvidos: em 2016, a Oxfam denunciou um frigorífico nos Estados Unidos que permitia somente duas pausas para ir ao banheiro — em casos extremos, alguns trabalhadores utilizavam fraldas.
Imposto é roubo?
Diante desse quadro, a participação dos setores público e privado é essencial para atenuar as desigualdades e melhorar a qualidade de vida da maior parte da população. “As empresas devem adotar padrões para a remuneração, como equiparação de salários entre mulheres e homens, entre negros e brancos, além de reduzir as diferenças entre a remuneração de acionistas com a dos salários dos trabalhadores”, diz Georges.
O Estado, entretanto, continua como o principal responsável para promover políticas públicas capazes de combater a concentração de renda. De acordo com a Oxfam, é necessário que os mais ricos paguem impostos de maneira proporcional, combatendo sonegações fiscais e evasão de divisas. “O sistema tributário atual no Brasil é bastante injusto, somos a vanguarda do atraso, temos uma série de tributos indiretos que são injustos”, afirma o porta-voz da Oxfam Brasil.
Hoje, os 10% mais pobres da população brasileira gastam 32% da renda em tributos. Os 10% mais ricos, por sua vez, contribuem com 21%. Para a Oxfam, ampliar a segmentação das faixas de renda para a cobrança de impostos possibilitaria uma cobrança mais justa e proporcional — atualmente, há apenas cinco faixas para a base de cálculo.
E daí, não adianta afirmar que a corrupção é o grande problema do Brasil ao mesmo tempo em que se defende a máxima “imposto é roubo”. Apesar de não ser possível calcular com precisão quanto dinheiro não é declarado anualmente, entidades que estudam o tema afirmam que mais de R$ 400 bilhões são sonegados todos os anos no Brasil, um valor 10 vezes maior do que teria sido desviado de acordo com as investigações conduzidas pela Operação Lava-Jato.
“Esse é um ano para as pessoas debaterem a desigualdade no Brasil, porque isso tem a ver com o crescimento da violência, com a existência da corrupção. Sem atacar a raiz dos problemas, vamos ficar enxugando gelo”, diz Georges. Resta saber se aqueles que há 500 anos detêm os privilégios no país estão dispostos a realizar essa discussão…